domingo, 26 de junho de 2011

O céu estava pálido.
Fiquei a fitá-lo por alguns segundos, com a mente tão branca quanto ele. Vazia. Infinita. Fechei os olhos com força e pequenos flashes coloridos, frenéticos, me hipnotizaram por um instante. Ao abrí-los, voltei a olhar para o céu. Me apoiei na janela. Décimo terceiro andar. Enconstei meu rosto nas grades frias, de ferro; meus olhos presos a algum ponto qualquer da rua: pequenos vultos indo para todos os sentidos, um emaranhar de vozes e outros sons distantes, o barulho abafado dos carros no asfalto. Nuvens. Algumas gotas geladas caíram, repentinas, sobre meu braço. Escorreram pelo parapeito. De encontro com as grades de ferro, faziam uma espécie irritante de tilintar. No começo, poucas. E foram aumentando. E o céu escureceu.
E tinha aquele menininho empinando uma pipa no meio da estrada, as roupas e o rosto meio encardidos, a mistura de cabelo e de suor e o sol, aquele sol imponente do meio-dia, deixando os olhinhos espremidos, só uma fresta e o breu (refletia o céu)... Os pés calejados pelos desníveis da terra batida, pés de José, esses pés não se machucam, esses pés não se cansam: pés de criança (pra criança tudo é nuvem), pés de adulto forçado (tanto andam, tanto ferem... já não sentem, sequer o querem), e o vento conduzindo e a pipa dançando feito louca, um pouco imprevisível, ora frenética, ropiando pelo azul, ora calma, deslizando, deslizando...
E o menino era alheio a tudo, ele só existia para aquele chão vermelho de terra e o som do vento, dentro dele só havia a pipa, colorida, pequena, dançando feito louca e o céu inteiro
Catarina sentou na escada que subia para a  pequena igreja. Era uma igreja antiga, escondida em qualquer esquina vazia do centro da cidade, onde podiam-se ouvir, meio que abafados pela distância, carros buzinando, vozes estridentes, música alta e outros sons vagos e barulhos corriqueiros. Na tal rua da igreja, porém, só o que havia era silêncio e Catarina (exceto por um ou dois transeuntes e um bem-te-vi bicando qualquer coisa rente à valeta). Seus cabelos escuros, tortuasamente repicados por uma tesoura escolar, faziam cócegas em seus ombros pequenos e brancos feito leite; e os olhos, da cor do mel, estavam fixos no asfalto brilhante. Uma folhinha, pequena que só, caiu sobre o joelho da menina. Seus lábios esboçaram um sorriso. Logo voltaram a uma expressão séria. Sabia que devia estar em casa. Mas. Mas? Mas Catarina não tinha casa. Olhou os pés descalços, um pouco sujos. Tentava manter-se limpa. As ruas eram sujas e a sujeira impregnava a pele de quem nelas residia. Muitas outras pessoas que moravam nos prédios imponentes que as sombreavam  pensavam que não, mas também eram. A cidade é encardida.
 É fato que tinha feito amigos pelas avenidas, sim, mas seus olhos distantes imaginavam se um dia moraria em um daqueles prédios, ou se, de pequena, morara em alguma casa qualquer, com alguma mãe. Só de pensar um pouquinho, dava pra sentir como devia ser bom. Mas passava rápido. Imaginava se tinha um nome. Achava Catarina bonito, e por isso o escolhera. Era Catarina. Mas qual era seu nome? Quem era Catarina?
Catarina tinha fome de pão e muitas outras fomes e sedes preenchiam a menina, também.
Começou a chover. Fechou os olhos e derramou seu pranto silencioso junto com com a chuva, para disfarçar as lágrimas.
Que nobre função desempenham as armaduras, protegendo-nos dos usuais riscos cotidianos, não?
Ah!  Como brilham, como cintilam seus adornos metálicos, como amedronta a todos sua inegável tenacidade! Pesadas, rígidas, feitas para destruírem e para durarem.
É por isso que nós, como soldados, vestimos armaduras.
Desde tenros anos, carregamos uma. Como esperado, ela evita que meios externos nos machuquem, escondendo nossos corpos. Seus desníveis e farpas, porém, ferem a pele emplastrada de sangue e suor.
É uma sorte que ninguém o veja  — seria uma vergonha expor tamanha fragilidade. É por isso que vestimos armaduras. Vestimos armaduras pois, como armaduras, almejamos ser rijos, fortes, frios, mesmo que seja impossível o ser. Vestimos armaduras pois em meio a tantas batalhas, por ínfimas que sejam, alguém disse que são elas que prometem proteção. E nós acreditamos.
Do fundo de sua anatomia metálica, por entre as frestas que nos restam, espiamos o movimento lá fora. Encolhidos, nus e sedentos. Aceitamos, esmagados pelo peso das diversas camadas que conferem beleza e durabilidade à sua carcaça, as escaras que nos causa. Mais do que nos defender, armaduras nos escondem —  dos outros e de nós. Não contestamos ou questionamos seu uso. Usamos nossas ilusórias armaduras pois damos à vida a ilusória ideia de ser uma guerra.
É por isso que nós, como soldados, não vivemos. Marchamos.

E o riso, antes contido, torna-se gargalhada repentina, histérica; escorre depressa pelos cantos da boca escancarada, pinga incessante sobre a pele despida, propaga-se incontrolável em ecos aflitos, altos, gritos; berros descontrolados, as faces contorcidas, os olhos revirando-se de êxtase ou pavor diante da realidade.

terça-feira, 21 de junho de 2011

os cabelos soltos dançando ao redor da cintura de contornos frágeis, os pés em ponta no piso frio do banheiro apertado.  as primeiras gotas, ainda indecisas de sua temperatura, caem sobre as costas alvas e nuas, arrepiadas pelo frio cortante do lugar; os olhos fechados e a face para o alto, como em algum apelo divino. as gotas caem, confudem-se com lágrimas correndo pelo rosto e corpo; caem, cálidas, memórias líquidas envolvendo seus contornos sutis; trágicas ilusões, caem e deslizam, entram na boca em sorriso, que as bebe veemente, como que ânsia de uma fusão qualquer;  doces reminiscências, vis, queridas memórias, frutos de um desvario qualquer; doces... engolidas pelo ralo
A pequena vela, alheia a tudo, ilumina com timidez trêmula os movimentos da minha mão, tão pálida quanto os papéis em que derramo minhas palavras minúsculas e repletas de segredos.
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Em descompasso desvairado, passa diante de meu olhar inerte o Tempo; fita meus olhos letárgicos e, com inegável prazer, pisoteia meu corpo com seu trote pesado. Segue adiante, então, furioso, veloz, e desaparece à medida em que alcança o horizonte.
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Uma escuridão aguda preenche o cômodo: a vela derreteu e os poucos feixes de luz que adentram a alta janela não são suficientes para iluminar. Tateio a estante caótica à procura de mais velas e fósforos.
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Há quanto tempo, em ânsia e desespero, sento nessa cadeira desconfortável, curvado sobre o calhamaço, como em proteção ao que escrevo com movimentos mecânicos e veementes?
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Por que escrevo, se tudo isso ficará em qualquer canto apertado e coberto por poeira
da minha própria estante?